Cresci com animais criados pelos meus avós para abate e consumo próprio: galinhas, coelhos, porcos. Tão depressa estava a tratá-los como animal de estimação como eram o jantar nesse dia. Ajudei muitas vezes na matança do porco: segurava a bacia para recolher o sangue enquanto o matador enfiava a faca na jugular. Segurei as patas traseiras dos coelhos para a minha mãe esfolá-los. Segurava as galinhas para serem mortas e depois ajudava a depená-las. Não sou, em parte por isso, uma pessoa facilmente impressionável.
Algures nos meus vinte e poucos anos, fui a Madrid pela primeira vez e ofereceram-me bilhetes para ir à La Ventas, a praça de touros. Lembro-me de entrar e sentir que estava num coliseu romano, com lugares apertados e totalmente apinhado para verem com expectativa o que se seguia.
O primeiro touro entrou na arena e fiquei imediatamente apreensiva e com vontade de me ir embora. O touro entrou já com sangue a escorrer-lhe na pele e no dorso. O toureiro fingia uma dança que na realidade não era mais do que uma tortura maquiavélica num animal que já à partida estava numa posição inferior. Nunca seria uma luta de igual para igual. A certa altura, o toureiro sacou de uma espada para o golpe de triunfo do ser humano sobre um animal indefeso. Falhou. Falhou miseravelmente e o que vi impressionou-me, enojou-me, chocou-me. Ainda hoje tenho a imagem bem presente do touro a vomitar sangue por todos os orificios e em agonia enquanto esperava que alguém lhe aplicasse um golpe de misericórdia e terminasse com o seu sofrimento.
A multidão que assistia não gostou do que viu, mas apenas porque o toureiro "não era grande coisa" conforme me explicaram. Não sei como não vomitei de nojo ali mesmo. Não conseguia sair, não estava sozinha e tive que ficar até ao fim, em que basicamente passei o resto do "espetáculo" de olhos no chão, recusando-me a ver.
A diferença entre a tourada e a matança dos animais que os meus avós faziam não podia ser tão díspare. Os meus avós respeitavam o animal, tentavam dar-lhe uma morta rápida e sem dor. Matavam para comer. Não para se divertirem. E ai de quem estivesse a asssitir com pena do bicho ali ao pé, porque segundo a minha avó, isso prolongava a agonia ao animal e nem pensar! Além disso, não era um espectáculo para se ter assistência.
Cruzei-me por acaso, com uma publicação no Facebook de um "ATL inclusivo" em que levaram crianças a assistir a uma tourada. Não sei muito bem como é que este tipo de actividade é inclusiva ou se as pessoas responsáveis pela essa actividade têm noção do que significa a palavra "inclusão".
Não me digam que é tradição: na Idade Média também era tradição comer com as mãos, todos da mesma travessa, e limpar as mãos aos cães que circundavam a mesa; tamém era costume urinar e defecar para baldes e atirá-los para a rua, sem se importarem com quem passava debaixo da janela (daí a expressão "água vai"); a tortura da inquisição e a pena de morte também era "tradição" e "cultura"; trabalho infantil também era "tradição" até há bem pouco tempo; casamentos combinados por interesses e sem consentimento dos noivos também eram "tradição" (e em alguns sitios ainda são). Os meus avós há muito que não fazem matanças. Mas torturar um animal até à morte apenas por diversão continua a existir e a ser "cultura" e "tradição".
Uma coisa sei: sim,eu ajudei a mater galinhas, coelhos e porcos para consumo próprio. Mas jamais serei capaz de apoiar uma tourada.